HISTÓRIA

“são (os titans) como tentáculos que avançam sobre o mar (…) unhas de uma tenaz de granito para comprimirem entre si um retalho do Oceano, amansando-o, submetendo-o, domesticando-o, com a vontade invencível do génio humano”.
 

Oliveira Martins, 1885

Tal como o antigo porto de Rodes, que possuía à entrada uma gigantesca estátua em bronze de Apolo (uma das famosas e desaparecidas Sete Maravilhas do Mundo Antigo), também Matosinhos e o seu porto de Leixões possuíam os seus “colossos”. Metálicos. Dois. Um em cada molhe. Únicos no mundo, os “titans” são monumentais guindastes que documentam de forma privilegiada a época da arquitectura e engenharia do ferro e da energia a vapor. Irmãos próximos de outros famosos monumentos metálicos de grandes dimensões do final de oitocentos, como a torre Eiffel (1889) ou, entre nós, as pontes Maria Pia (1877) e Luís I (1888) ou o mercado Ferreira Borges (1885), os titans foram fulcrais na edificação do porto de Leixões – a maior obra de engenharia realizada em Portugal no século XIX. Afinal, foi graças à sua força e à sua avançada decidida sobre o mar que os molhes portuários foram construídos no término desse século.

Depois de séculos de projectos, indefinições, sonhos, entraves e utopias, e decididamente impulsionado pela trágico naufrágio do vapor “Porto” na barra do Douro em 1852, foi, por fim, a 13 de julho de 1884, que se iniciou a construção do porto artificial de Leixões – uma alternativa, que há séculos se impunha, à crescente perigosidade da barra do grande rio e às enormes dificuldades que as embarcações tinham para aportar nos cais do Porto e Gaia: o estuário do Douro era há muito um cemitério de barcos e de homens. Mas o projecto não era fácil. O novo porto seria uma obra titânica!

Baptizado com o nome dos rochedos sobre os quais assentou parte significativa dos molhes, Leixões foi projetado pelo Eng. Afonso Nogueira Soares e construído pela empresa francesa “Dauderni et Duparchy” que havia vencido o concurso internacional (foi a única a concorrer), com um valor de adjudicação traduzido na, para a época, fabulosa quantia de 4 milhões e 489 mil réis. Nomeado pelo dono da obra – o Estado português – o autor do projecto supervisionou durante os anos seguintes a empreitada e, não obstante a complexidade de que se revestiu a edificação desta estrutura portuária, os prazos foram cumpridos: após a entrega provisória em 1892, a definitiva deu-se em 1895. Na base do sucesso destas obras encontram-se vários factores. Dois deles, no entanto, são incontornáveis: a dupla dos gigantescos guindastes movidos a vapor – os titans – que, bloco após bloco, foram erigindo sobre o fundo marinho e rochoso os molhes que definiram o porto.

Com efeito, a construção inicial do porto artificial consistiu, fundamentalmente, na formação de uma grande enseada, com cerca de 95 hectares, delimitada pela construção de dois extensos paredões ou molhes: o do lado norte com 1579 metros e o do lado sul com 1147 metros. E, entre eles, uma abertura de 220 metros permitindo a entrada e saída das embarcações. Além destes paredões foi também construído, no extremo do molhe norte, um quebra-mar que, elevando-se apenas um metro acima do zero hidrográfico, prolongava em mais algumas centenas de metros aquele paredão. Para a construção dos molhes foi utilizado o granito de pedreiras próximas, a mais importante das quais foi a do Monte S. Gens (Custóias) que se viu ligada a Leixões por uma linha de comboio, com cerca de sete quilómetros de extensão e construída expressamente para esse fim.

Após a sua chegada aos estaleiros e oficinas, que foram montados em Matosinhos (para apoio à edificação do molhe sul) e Leça da Palmeira (para o molhe norte), as pedras eram então trabalhadas e conglomeradas por um grande número de operários – um verdadeiro formigueiro humano, onde se incluíam mulheres e crianças – dando origem aos enormes blocos graníticos que formariam os paredões e que chegavam a atingir as 50 toneladas. Tal peso, embora pouco prático para o manuseamento destes blocos na obra, era a garantia da futura estabilidade e resistência dos molhes face ao impacto e ferocidade do mar. Mas era, de facto, um problema. Como proceder para transportar, erguer e posteriormente depositar no local desejado os ciclópicos e pesadíssimos blocos graníticos?

Para um grande problema só uma solução “titânica”. Com efeito, para resolver esta questão a empresa construtora, a “Dauderni & Duparchi”, encomendou às famosas oficinas francesas “Fives”, em Lille, dois gigantescos e poderosos guindastes. Graças à resistência do ferro em que foram construídos e à força da energia a vapor que os movia foram eles, com efeito, que tornaram possíveis tais operações. Tais características, associadas ao seu aspeto colossal – quase 69 metros de comprimento, pesando 420 toneladas e erguendo-se até cerca de 17 metros de altura – justificaram a sua designação: “titans”. Mais de vinte anos antes do aparecimento do gigante e tragicamente célebre navio “Titanic”, naufragado em 1912…

Com envolvimento alemão no seu fabrico, os potentes guindastes foram transportados das oficinas francesas da “Fives”, montados em Leixões e dirigidos durante os primeiros anos pelo técnico francês Lecrit. Movidos a vapor, no seu topo impunha-se a fumarenta “casa das máquinas” que abrigava as caldeiras de vapor de 50 cavalos e os operários que as alimentavam a carvão. Deslocando-se cada um no seu molhe, sobre carris cuja via chegou a ter dois quilómetros, desde os estaleiros onde eram montados os blocos até à extremidade dos paredões, e depositando, mar adentro, bloco após bloco, os titans foram por isso cruciais na edificação do porto. Auxiliando-os, salientaram-se também as “caranguejeiras” que, igualmente movidas a vapor, levavam os blocos até ao guindaste.

Após a edificação dos molhes, os titans continuaram a ser utilizados nas reparações dos paredões, na sequência de danos provocados pela ação tempestuosa do mar. De resto, o titan do molhe norte foi protagonista das consequências de um fortíssimo temporal ocorrido na noite de 22 para 23 de dezembro de 1892, caindo ao mar. Sobre esse acontecimento refletiu Alberto Pimentel em 1893: Não se doma facilmente o oceano, não se modifica, sem ter que vencer grandes dificuldades, a obra espontânea da natureza. Mas a ciência, a engenharia hidráulica, confiada nos seus poderosos recursos, ia encetar a luta com o oceano e estava certa de vencê-lo, não sem violentas refregas e frequentes conflitos com tão valoroso adversário. Por sua parte, o mar revirava o dente à hidráulica, procurava reaver o terreno que a ciência lhe conquistava, e, apesar de ficar vencido na luta, ainda não está resignado com a derrota, ainda de vez em quando, como aconteceu o ano passado, se arremessa em fúria contra o porto de Leixões para desfazê-lo.

Só mais de três anos depois, na Primavera de 1896, e depois de muitos estudos e esforços, se conseguiu recuperar o titan do fundo marinho, com o auxílio de potentes macacos mecânicos assentes em barcaças. Rapidamente recuperado, o gigantesco guindaste retomou a sua atividade, dando razão a quem os contemplava, incluindo a imprensa da época, como um produto da modernidade e da genialidade humana. Dez anos antes, em 1886, a revista “O Ocidente” classificava os titans como uma “verdadeira monstruosidade” e um “arrojo da mecânica moderna” – “vê-lo trabalhar, assombra!”

Terminadas as edificações, arranjos e consolidações portuárias os guindastes foram ainda, durante décadas, utilizados para carga e descarga de mercadorias (o do molhe sul pelo menos até aos anos ‘60 do século XX).

Independentemente do significado de que os titans se revestem para a história de Leixões e de toda a região, eles possuem importância acrescida pelo seu valor como testemunhas privilegiadas da era industrial e da arquitectura/engenharia do ferro. Importância tanto maior quanto o facto de, aparentemente, se tratarem de exemplares únicos no mundo. Porque, se é verdade que os dois titans de Leixões tiveram outros irmãos, não é menos verdade que, nos outros casos, concluídas as grandes construções para as quais foram concebidos, esses gigantes de ferro foram desmantelados. E quando isso não aconteceu, nomeadamente na Europa, a primeira e a segunda guerra mundiais encarregaram-se da sua destruição tendo em conta que, desde muito cedo, os portos marítimos foram alvos prioritários de bombardeamento.

Sabemos da existência, ainda hoje, de mais guindastes de gigantescas dimensões, alguns dos quais são igualmente conhecidos como titans, como é o caso dos do porto de Glasgow (Escócia), ou de outros na Nova Zelândia, na Argélia e em alguns portos sul-americanos. São, no entanto, posteriores, de menores dimensões ou utilizando já outras fontes energéticas, nomeadamente a electricidade.

Marcas icónicas de Leixões e da região, mais de um século depois da sua montagem, os gigantescos guindastes permaneciam e resistiam sobre os molhes que construíram, quais duas titânicas estátuas erigidas à memória dos tempos pioneiros da construção do porto. A importância crucial que possuíram no contexto da edificação desta estrutura portuária, a sua imponência e força, o valor simbólico que, ao longo de mais de um século, criaram em torno de si, e a sua importância patrimonial como monumentos únicos no mundo fizeram deles os “colossos” de Leixões. E, desde há muito, um dos elementos mais emblemáticos da paisagem e da Identidade de Matosinhos e da região.

Não foi por acaso que, aquando das profundas intervenções de regeneração da marginal da cidade no âmbito do programa “Polis”, já no início do século XXI, da autoria de Eduardo Souto Moura, a “velha” praia de Matosinhos foi renomeada como “praia do titan”, do mesmo modo que, mais recentemente, foi a imagem deste titânico guindaste que foi assumida como o elemento icónico dominante no brasão da cidade e União de Freguesias de Matosinhos-Leça da Palmeira…

E por isso foi com grande perplexidade que, a 12 de abril de 2012, se assistiu ao colapso e fragmentação do titan do molhe sul (o do lado de Matosinhos) na sequência de um acidente e de uma explosão aquando do início da construção do novo Terminal de Cruzeiros. Tratava-se de uma significativa perda patrimonial e algo que afectava a Identidade e Memória da cidade e da região, de um modo que parecia irrecuperável. A APDL – Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, S.A. – todavia recolheu e salvaguardou todos os fragmentos possíveis do histórico mecanismo, prometendo que procederia à sua regeneração. Oito anos depois, em 2020, após múltiplos estudos, consultas e pareceres, as operações de restauro, conservação, consolidação e reconstituição do centenário e gigantesco guindaste tiveram início. É o RENASCER DO TITAN.

PARA SABER MAIS
– ALVES, Jorge Fernandes & TORRES, José Lima – “Douro e Leixões. A vida portuária
sob o signo do bilhete postal”. Porto: Edições ASA, 2002. ISBN 972-41-3213-7.
– CLETO, Joel – “Porto de Leixões”. Matosinhos: APDL, 1998.
– PACHECO, Elsa & ALVES, Jorge Fernandes – Porto: a cidade industrial e o sistema portuário. “Atas do II Congresso Histórico Internacional. As Cidades na História: Sociedade”. Vol. III (Cidade Industrial).
Guimarães: Câmara Municipal, 2019. ISBN 978-989-8474-54-4.
– SOUSA, Fernando de & ALVES, Jorge Fernandes – “Leixões. Uma história portuária”. Matosinhos: APDL, 2001.